O Testamento de Rodin, 1911
Este texto foi ditado por Auguste Rodin a Paul Gsell em 1911, para ser publicado após a sua morte. Está reproduzido em A História Geral da Arte Francesa, de André Fontainas e Louis Vauxcelles, 1922, volume 2 p. 259 e seguintes.
JOVENS QUE DESEJAIS ESTAR ENTRE OS CELEBRANTES DA BELEZA, TALVEZ VOS AGRADE ENCONTRAR AQUI O RESUMO DE UMA LONGA EXPERIÊNCIA.
Amai com devoção os mestres que vos precederam.
Inclinai-vos diante de Fídias e de Michelangelo. Admirai a divina serenidade de um, a feroz angústia do outro. A admiração é um vinho generoso para os espíritos nobres.
Entretanto, preservai-vos de imitar os mais velhos. Respeitosos da tradição, sabei discernir o que ela encerra de eternamente fecundo: o amor à Natureza e a sinceridade. São essas as duas paixões dos gênios. Todos adoraram a Natureza e nunca mentiram. Deste modo, a tradição vos estende a chave graças a qual podereis evadir-vos da rotina. É a própria tradição que vos recomenda interrogar incessantemente a realidade e que vos proíbe de vos submeter cegamente a qualquer mestre.
Que a Natureza seja vossa única deusa. Nela depositai uma fé absoluta. Estai certos de que ela nunca é feia e limitai vossa ambição a lhe ser fiéis.
Tudo é belo para o artista, pois em todo ser e em toda coisa, seu olhar penetrante descobre o caráter, isto é, a verdade interior que transparece sob a forma. E essa verdade é a própria beleza. Estudai religiosamente – não podereis deixar de encontrar a beleza, porque encontrareis a verdade.
Trabalhai obstinadamente.
Estatuários, fortificai em vós o sentido da profundidade. O espírito dificilmente se familiariza com essa noção. Ele só representa distintamente superfícies, sendo-lhe difícil imaginar formas em espessura. Aí esta, portanto, a vossa tarefa.
Antes de tudo, estabelecei nitidamente os grandes planos das figuras que esculpis. Acentuai vigorosamente a orientação que dais a cada parte do corpo, à cabeça, aos ombros, à bacia e às pernas. A arte exige decisão. É pela fuga bem acentuada das linhas que mergulhais no espaço e que vos apoderais da profundidade. Quando vossos planos se fixarem, está tudo descoberto. Vossa estátua já vive. Os detalhes nascem e, em seguida, ordenam-se por si mesmos.
Enquanto modelais, não penseis jamais em superfície, mas em relevo.
Que vosso espírito conceba toda superfície como a extremidade de um volume que a empurra por trás. Imaginai as formas como se estivessem apontadas para vós. Toda vida surge de um centro, depois germina e desabrocha de dentro para fora. Do mesmo modo, na boa escultura, adivinha-se sempre um poderoso impulso interior. É o segredo da arte clássica.
Vós, pintores, observai, da mesma forma, o real em profundidade. Olhai, por exemplo, um retrato pintado por Rafael. Quando esse mestre representa um personagem de frente, ele faz o peito fugir obliquamente e é assim que dá a ilusão da terceira dimensão.
Todos os grandes pintores sondam o espaço. É na noção de espessura que reside a sua força.
Lembrai-vos disso: não ha traços, só ha volumes. Quando desenhais, nunca vos preocupeis com o contorno, mas com o relevo. É o relevo, que rege o contorno.
Exercitai-vos sem descanso. É preciso acostumar-vos à profissão.
A arte não é senão sentimento. Mas sem a ciência dos volumes, das proporções, das cores, sem a destreza da mão, o sentimento mais vivo paralisa-se. O que aconteceria com o maior poeta em um pais estrangeiro cuja língua ele ignorasse? Na nova geração de artistas há um grande número de poetas que, infelizmente, se recusa a aprender a falar. Por isso, não fazem mais que balbuciar.
Paciência! Não conteis com a imaginação. Ela não existe. As únicas qualidades do artista são: sabedoria, atenção, sinceridade e vontade. Cumpri vossa tarefa como operários honestos.
Jovens, sede verdadeiros. Isto porém, não significa: sede banalmente exatos. Há uma exatidão elementar – a da fotografia e do modelado. A arte só principia com a verdade interior. Que todas as suas formas, todas as suas cores traduzam sentimentos.
O artista que se contenta com o trompe-l’oeil (tipo de pintura que produz ilusão de ótica – N. da T.), e que reproduz servilmente detalhes sem valor, nunca será um mestre. Se visitastes algum campo santo da Itália, provavelmente observastes a puerilidade com que os artistas encarregados de decorar os túmulos limitam-se a copiar, em suas estátuas, os bordados, as rendas, as tranças de cabelo. Não são verdadeiros, já que não se dirigem à alma.
Quase todos os nossos escultores lembram os dos cemitérios italianos. Nos monumentos de nossas praças públicas, distinguimos apenas sobrecasacas, mesas, veladores, cadeiras, máquinas, globos e telégrafos. Nada de verdade interior, logo, nada de arte. Desprezai esses trastes.
Sede profundamente, ferozmente verídicos. Nunca hesiteis em expressar o que sentis, mesmo quando vos opuserdes às ideias prontas. Talvez não sejais logo compreendidos. Mas vosso isolamento terá curta duração. Amigos logo virão procurar-vos – pois o que é profundamente verdadeiro para um homem, o é para todos.
Contudo, nada de caretas ou contorções para atrair o público – simplicidade, singeleza!
Os temas mais belos encontram-se diante de vós: são os que conheceis melhor.
Meu caríssimo e extraordinário Eugene Carriere, que tão cedo nos deixou, deu mostras de gênio ao pintar sua mulher e seus filhos. Bastou-lhe celebrar o amor maternal para ser sublime. Os mestres são os que olham com seus próprios olhos o que todos viram e que sabem perceber a beleza do que é demasiado comum para os outros espíritos.
Os maus artistas vêem sempre com os olhos de outrem.
O essencial é emocionar-se, amar, esperar, vibrar, viver. Ser homem antes de ser artista! A verdadeira eloqüência zomba da arte. Retomo, aqui, o exemplo de Carriere. Nas exposições, a maior parte dos quadros é apenas pintura – os dele, no meio dos outros, pareciam janelas abertas para a vida!
Acolhei as críticas justas. Ireis facilmente reconhecê-las. São aquelas que vos confirmarão uma dúvida que já vos assalta. Não vos deixeis atingir por aqueles que vossa consciência não admite.
Não temais as críticas injustas. Elas revoltarão os vossos amigos, forçando-os a refletir sobre a simpatia que tem por vós e que manifestarão com mais segurança quando dela melhor discernirem os motivos.
Se vosso talento é novo, só contareis no primeiro momento com poucos partidários e tereis uma quantidade de inimigos. Não vos desencorajeis. Os primeiros triunfarão – pois eles sabem porque vos amam – os outros ignoram porque vós lhes sois odiosos. Os primeiros são apaixonados pela verdade para a qual recrutam, incessantemente, novos adeptos – os outros não testemunham qualquer zelo duradouro por sua opinião falsa. Os primeiros são tenazes, os outros vão ao sabor dos ventos. A vitória da verdade é certa.
Não percais vosso tempo a estabelecer relações mundanas ou políticas. Vereis muitos dos vossos confrades chegarem às honrarias e à fortuna pela intriga – não são verdadeiros artistas. Alguns são, no entanto, muito inteligentes e se vos empenhardes a lutar com esses pseudo-artistas em seu próprio território, ireis consumir tanto tempo quanto eles, isto é, toda a vossa existência: não vos sobrará, portanto, mais um minuto para ser artista.
Amai apaixonadamente vossa missão. Mais bela não há; é muito mais elevada do que o vulgo possa crer.
O artista dá um grande exemplo. Ele adora o seu ofício – sua mais preciosa recompensa é o prazer de trabalhar bem. Atualmente, que tristeza! Os operários são persuadidos, para a sua infelicidade, a odiar seu trabalho e a sabotá-lo. O mundo só será feliz quando todos os homens tiverem almas de artistas, quer dizer, quando todos encontrarem prazer em sua tarefa.
A arte é, ainda, uma magnífica lição de sinceridade.
O verdadeiro artista expressa sempre o que pensa com o risco de sacudir todos os preconceitos estabelecidos.
Ele ensina, assim, a franqueza aos seus semelhantes.
Ora, imaginemos que maravilhosos progressos se realizariam repentinamente se a verdade absoluta reinasse entre os homens.
Ah! Com que presteza a sociedade se livraria dos erros
e deformidades que tivesse confessado
e com que rapidez nossa terra
se tomaria um Paraiso!
AUGUSTE RODIN